O pajem que estivera com Catarina entrou na tenda onde se encontrava Martim.
– D. Martim, está ali um moço, acompanhado do criado, que diz ser filho de D. Henrique Sanches de Carvalho. Veio oferecer os seus serviços.
O rosto de Martim alvoroçou-se de alegria, mas depois ficou com uma expressão atónita, trocando um olhar com D. Álvaro Gonçalves que estava perto dele.
– Não sabia que D. Henrique tinha um filho.
– Também eu… – respondeu o outro, confuso. – Só conhecia a filha…
Martim abanou a cabeça, ainda perplexo em desconhecer algo tão importante.
– Trazei-o então à minha presença. Não o façais esperar!
O homem saiu a correr e pouco depois voltava com Catarina e Sancho que ficou à entrada, como um bom criado que se preza, mas não muito longe de Catarina.
A jovem entrara na tenda, sentindo as pernas a tremer. Para seu grande desconsolo corou ao ver o noivo. Felizmente para ela o seu rosto estava tão escurecido do Sol e do pó dos caminhos que não se percebeu muito. Os homens aperceberam-se da sua atrapalhação, mas associaram-no à sua juventude e timidez.
– Aproximai-vos – pediu o cavaleiro, com as mãos atrás das costas e sorrindo com simpatia.
Ela assim fez, tentando andar pesadamente como Sancho, mas sem grande sucesso, pois as pernas estavam bambas por se encontrar na presença do noivo.
Martim deitou-lhe um olhar penetrante, sentindo-se ainda estupefacto por nunca ter ouvido falar no rapaz, nem por D. Henrique, nem por Catarina. Não podia deixar de achar aquilo muito estranho. Calculou pelo tamanho que o rapaz devia ser muito jovem, talvez treze ou catorze anos, com certeza…
– Bons olhos vos vejam! Como é a vossa graça…?
Por uns segundos que a Catarina pareceram longos minutos, a sua voz parecia ter desaparecido, para seu grande desespero. Por fim lá conseguiu, depois de muito esforço.
– Afonso… Meu nome é Afonso! – disse, engrossando a voz. Pôs o punho na anca como vira fazer a Martim há momentos atrás e lembrou-se de terminar com um gesto que vira a outro homem, e cuspiu para o lado, acertando no seu próprio pé, por acidente. Ficou muito corada e levantou os olhos.
Martim olhava-a com estranheza. Abanou a cabeça, subitamente, como se quisesse despertar da sua distracção.
D. Álvaro pestanejou e o pajem levantou as sobrancelhas, numa expressão de profundo espanto.
Catarina ergueu o queixo, com ar insolente e deitou-lhes um olhar aborrecido, enquanto limpava apressadamente o peito do pé às pernas das calças. Fez tenção de cuspir na direcção de Martim e este deu um salto para o lado.
– Então, vosso nome é Afonso Henriques.
Naqueles tempos eram muito usados os patronímicos, que permitiam saber através do nome, de quem se era filho. Por exemplo. D. Henrique teria um filho a quem daria o nome Afonso. O segundo nome desse filho levava o nome do pai, mas com um sufixo. Ficaria Afonso Henriques. Afonso, filho de Henrique. Sancho dava ao seu filho o nome Álvaro. Ficaria Álvaro Sanches.
Aquilo apanhara Catarina de surpresa. Esquecera-se completamente disso ao tomar o nome de Afonso. Afigurava-se-lhe um nome demasiado pesado para suportar sobre os seus ombros tão frágeis. Para disfarçar a sua atrapalhação cuspiu para o lado, não acertando na bota de Martim por um simples milagre, pois a cuspidela ficou a um simples milímetro.
Martim olhava-a, perplexo, estranhando o comportamento daquele jovem. Só podia ser um tique, coitado.
– É verdade. Meu nome é Afonso Henriques – disse ela, coçando-se entre pernas, para escândalo de Martim. Sancho teve vontade de tapar os olhos com as mãos, mas conteve-se.
– O nome mais valoroso que alguém pode ter – declarou D. Álvaro, emocionado.
Ela corou novamente, embaraçada. Parecia-lhe quase um pecado ter usurpado o nome do primeiro rei de Portugal. Mas agora já era impossível voltar atrás.
– Vim apresentar-me ao serviço para matar os malditos castelhanos – e ao pronunciar a palavra “castelhanos” cuspiu duas vezes, como vira um homem fazer no dia anterior sempre que pronunciava aquela palavra.
Martim recuou um pouco, mantendo-se a uma distância segura das suas cuspidelas repentinas.
Sancho teve de virar a cara para o lado, morto de riso.
– E já vos batestes alguma vez com algum?
Ela levantou o queixo com ar altivo.
– Com esses perros castelhanos? – e cuspiu duas vezes para o chão, com ar enojado. – Ainda não, senhor, mas estou preparado para tudo. Espero matar uma boa parte de castelhanos inimigos – e voltou a cuspir duas vezes.
– Espero que não penseis derrotá-los, cuspindo-lhes em cima… – observou Martim, por entredentes.